Sobre o extrativista
redescoberto na década de 1980
* Ecio Rodrigues
Tendo sido decretada, pelo Estado brasileiro,
a extinção do extrativismo no decorrer da década de 1970, um novo e intenso
processo de expansão da agropecuária (mais pecuária que agro) foi levado a
efeito na Amazônia, sob elevados custos (financeiros, sociais e ecológicos)
para a sociedade brasileira.
Todavia, a despeito
das convicções estatais quanto ao fim de sua atividade, o persistente produtor
extrativista permanecia no interior da floresta, extraindo um leque variado de
produtos florestais, inclusive a “extinta” borracha.
A presença dos extrativistas remanescentes foi
sendo percebida, à medida que a construção das rodovias federais
disponibilizava extensas porções territoriais para a instalação da pecuária.
Com dois eixos bem definidos, o primeiro formado pelo corredor da
Transamazônica, e o segundo, pelo da BR 364 (ligando Cuiabá, no Mato Grosso, a
Rio Branco, no Acre), as vias de escoamento começaram a ser implantadas, a fim de
beneficiar uma produção agropecuária que se pretendia expressiva.
Além
da construção das rodovias, a expansão da agropecuária requeria mudança na
titularidade das terras – de forma que, sob segurança fundiária e jurídica, os
novos proprietários, sempre incentivados pelo planejamento estatal, pudessem
converter a floresta em pastos e consolidar o processo de ocupação.
No
modo extrativista de produção, a propriedade e a posse dos antigos seringais e
das colocações, respectivamente, efetivavam-se de modo bastante peculiar.
Enquanto os seringalistas detinham a propriedade dos seringais, os
seringueiros, por sua vez, eram considerados posseiros em suas colocações.
O seringalista, proprietário do seringal,
assentava um grande número de seringueiros, que se responsabilizavam pelo corte
da seringa e pela produção da borracha que seria comercializada pelo
seringalista – uma relação entre capital e trabalho que Euclides da Cunha
considerou a mais profunda anomalia capitalista, vez que o seringueiro
“trabalhava para escravizar-se”.
Enquanto o seringalista era indenizado pela
sua propriedade – que a partir da abertura das rodovias começou a passar para
as mãos dos pecuaristas –, o seringueiro continuava posseiro de sua colocação,
dispondo de direitos precários sobre a terra. Enquanto, no caso do
seringalista, era-lhe indiferente a posse do seringueiro, no caso do pecuarista
essa posse atrapalhava a instalação de pastos em grandes áreas continuas, como
requerido pelo padrão de produção da pecuária bovina.
Durante a década de 1980, contudo, o processo
de redemocratização do país, adjudicando ao seringueiro oportunidade de contato
com a população urbana, abriu-lhe espaço para reivindicar seu direito de propriedade
sobre as terras requeridas pela pecuária.
O conflito foi inevitável. Os extrativistas,
reunidos no que se chamou de Movimento dos Seringueiros, iniciaram os
“empates”, um tipo de barreira humana, pela qual os manifestantes, reunidos em
fileiras, tentavam impedir, apenas com sua presença, o avanço das frentes de desmatamento
sobre a floresta – fosse para a instalação da pecuária (o que motivava a
maioria dos empates), fosse para a abertura de rodovias ou de ramais de acesso
às fazendas de criação de gado.
A natureza pacífica da resistência não impediu
o assassinato de trabalhadores rurais, entre os quais duas destacadas
lideranças do movimento. Wilson Pinheiro e Chico Mendes tornaram-se mártires da
luta em favor do reconhecimento, pelas instituições do Estado brasileiro, do
direito de propriedade dos seringueiros sobre suas colocações.
Os extrativistas, que ganharam apoio da
academia, dos institutos de pesquisas, das organizações da sociedade civil, não
imaginavam que chegariam à década seguinte, a década de 1990, como expoentes de
um modelo de ocupação produtiva que garantiria a manutenção do ecossistema
florestal na Amazônia.
E a conservação da maior floresta tropical
úmida do planeta seria convertida, por sua vez, numa das mais significativas
preocupações da humanidade.
* Professor da Universidade Federal do Acre (Ufac),
Engenheiro Florestal, Especialista em Manejo Florestal e Mestre em Economia e
Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutor em
Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB).
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