segunda-feira, 29 de junho de 2020



O pacto da quarentena
* Aurisa Paiva & Raquel Eline S. Albuquerque
Existe uma máxima na ciência política que certamente pode ser aplicada a situações de crise como a que vivemos, que por seu turno dependem da atitude firme de lideranças no exercício de cargo de representação política: será sempre mais fácil impor regras a favor da correnteza.
Os ingleses inventaram, como sempre fazem, uma palavra para isso. Denominam enforcement o sistema voltado para fazer cumprir um decreto, uma lei ou outra norma que submeta um povo a uma nova conduta.
Sempre que a correnteza social – veja bem, está-se a falar de correnteza, não de maioria, nem sempre os dois termos têm correspondência – se direciona para um novo estado de coisas, o custo político e econômico será bem maior para reverter essa força, ou tendência.
Em março, o custo da decisão pela quarentena foi deveras elevado para governadores e prefeitos, que arcaram com a responsabilidade de impor essa medida drástica, ainda que recebendo posteriormente o resguardo da Suprema Corte.
Acionar o STF foi necessário, diante da conduta temerária do governo federal – que escolheu seguir a correnteza, a despeito do alto risco de ocorrência de óbitos, conforme alertado por especialistas.
Prefeitos e governadores, em todo o país, uniram-se no esforço de carregar o ônus político decorrente da paralização de escolas, lojas, restaurantes, enfim, de uma infinidade de pequenos e grandes estabelecimentos, deixando trabalhadores sem emprego e empresários sem renda – ônus esse atenuado apenas pela posição majoritária dos especialistas e da OMS.
Por sinal, hoje já não há dúvida que dar ouvidos à comunidade científica foi o mais acertado – e por duas razões, basicamente: as previsões se confirmaram; e o número de vidas salvas justificou o sacrifício.
Não à toa, estamos há quase dois meses sem ministro da Saúde, já que é difícil encontrar um profissional com perfil técnico para essa função espinhosa que aceite desconsiderar as orientações da OMS.
Passados mais de 100 dias de quarentena – o que significa dizer que estamos em casa há mais de 14 semanas –, agora a correnteza corre pela flexibilização do isolamento.
Embora com menor ênfase que na defesa do isolamento social, as estatísticas e orientações dos especialistas favorecem a decisão pela flexibilização, com alertas quanto à necessidade de se graduar a reabertura do comércio, mediante a definição de parâmetros, de acordo com a realidade vivenciada em cada cidade.
Este talvez seja o momento mais delicado dessa experiência inusitada trazida pela pandemia.
Tomando o exemplo da realidade do Acre e de Rio Branco, de um lado, nota-se um visível cansaço da população em relação à quarentena. Numa espécie de desobediência civil, as pessoas teimam em sair de casa, fazem aglomerações, filas nas portas de lojas, mesmo diante do perigo de contágio e morte.
De outro, percebe-se um certo clima de denuncismo, favorecido por postagens nas mídias sociais, e cobra-se das autoridades uma fiscalização ostensiva, inclusive no âmbito privado. Não raro, leem-se mensagens com insinuações de que estariam a ocorrer, em nossa cidade, festinhas privées, e – pasme-se! – responsabilizando a prefeitura por isso.
Equivocam-se os que cobram providências da Administração Municipal, ao não atentar para o fato de que, numa democracia, medidas excepcionais que limitem o direito de ir e vir e as liberdades pessoais – como é o caso do isolamento social – exigem a celebração de um pacto social em prol do bem comum.
Esse pacto não pode ser quebrado por nenhum dos lados da equação, sob pena de ruptura social.
Para resumir, as autoridades só podem tomar medidas extremas se e quando houver o assentimento da sociedade (e nesse caso, sim!, está-se a falar da maioria). Do contrário, corremos o risco de transpor a linha – tênue, diga-se – que separa um governo vigilante de um Estado policialesco.
Cabe aqui outra máxima da ciência política que é irrefutável e bem se aplica ao momento atual: o aumento da segurança depende, em igual proporção, da perda de liberdade.
Sim, Município e Estado têm que fazer sua parte – e sem dúvida estão fazendo, dentro dos limites circunscritos pelo pacto social da quarentena, de forma a proteger a população com o mínimo de trauma possível. Lançando mão do aparato policial quando é imprescindível, e em situações pontuais, para fazer valer a lei.
E que ninguém se engane: não há caminho fácil. As pressões são muitas e vêm de todos os lados.
Compartilhar a responsabilidade pela quarentena e pela reabertura, principalmente diante da ausência de uma liderança nacional à altura do desafio, exige dos gestores locais sobriedade, equilíbrio e, além de tudo, desprendimento do pleito eleitoral que se avizinha.
O que, há de se reconhecer, é extremamente complexo para quem depende do voto.
* Procuradoras Jurídicas do Município de Rio Branco

terça-feira, 23 de junho de 2020



Legal ou ilegal, missão do MMA é zerar desmatamento na Amazônia
* Ecio Rodrigues
Em 2019, as medições realizadas pelo reconhecido Inpe detectaram significativo aumento nas taxas de desmatamento na Amazônia, inclusive em unidades de conservação – como a reserva extrativista Chico Mendes, localizada no Acre.
Fazendo uso da estratégia bastante equivocada de contrapor um problema com outro, bem ao estilo “soltar um bode na sala”, em resposta aos números alarmantes divulgados pelo Inpe, o Ministério do Meio Ambiente, MMA, rebateu que boa parte do desmatamento medido era legalizada, ou seja, realizada sob o amparo do Código Florestal e normas correlatas.
Acontece que não é possível, atualmente, pelo menos no decorrer do mesmo ano da medição, diferenciar o desmatamento legalizado do ilegal (praticado ao arrepio da legislação).
Ademais, essa diferenciação é importante para o planejamento de políticas públicas, todavia, o MMA tem como missão institucional zerar o desmatamento – todo desmatamento, não importando se ilegal ou legalizado.
Com efeito, o que vai variar é apenas a forma de enfrentamento. No primeiro caso, o MMA pode lançar mão da fiscalização para conter e penalizar os produtores infratores; no segundo, fiscalizar não resolve, é necessário fomentar a exploração da biodiversidade florestal, de modo a desmotivar o produtor a investir na criação de boi, oferecendo-lhe alternativa de renda.
Por fim, todo desmatamento realizado numa reserva extrativista é ilegal. Afinal, na condição de categoria especial de unidade de conservação, a resex goza de proteção legal contra desmatamento e queimada.
Para explicar melhor. A Lei 9.985/2000, aprovada com o dispêndio de muito esforço e tempo por parte dos nossos deputados e senadores, instituiu o Snuc (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), no intuito de segregar e proteger os ecossistemas considerados especiais, seja por atributos biológicos ou físicos, seja por seu significado para as populações tradicionais.
Sob o manto do Snuc, portanto, expressiva porção do território nacional, organizada fundiariamente na forma de unidades de conservação, foi excluída do modelo de ocupação produtiva baseado no desmatamento para instalação de pasto e cultivo de grãos. Significa dizer que dentro dessas áreas não podem ocorrer as atividades produtivas ordinariamente praticadas do lado fora – a saber, criação de boi e plantio de commodities agrícolas (cana, milho, soja etc.).
Hoje, as unidades de conservação estão presentes nos 5 mais importantes biomas nacionais e, no caso da Amazônia, a meta é segregar, no mínimo, 20% das terras com florestas, mediante a criação, entre outras categorias de UC, de parques nacionais, estações ecológicas e (a mais importante do ponto de vista social) reservas extrativistas.
Enfim, para resumir e tirar o bode da sala:
1) Não é porque o desmatamento é legalizado que não deve ser combatido, sendo que os gestores ambientais têm a responsabilidade de zerar o desmatamento na Amazônia, pouco importando sua origem.
2) Dentro do perímetro das reservas extrativistas, todo e qualquer desmatamento pode ser, de pronto, considerado ilegal, competindo ao MMA, por meio do ICMBio, o órgão responsável pelo gerenciamento dessas áreas, tomar as medidas para coibir essa prática nociva.
No caso da Chico Mendes, a primeira reserva extrativista criada no país, um verdadeiro símbolo para a Amazônia, não há o que tergiversar, o MMA precisa agir já, antes que a área de floresta desmatada no lado de dentro da resex supere a devastada no lado de fora.  
         
*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.




segunda-feira, 15 de junho de 2020



Regionalização da gestão ambiental é desafio insuperável
* Ecio Rodrigues
Nos últimos 40 anos, o país discutiu e aprovou um arcabouço jurídico com o objetivo precípuo de promover a conservação de seus ativos ambientais, notadamente no que diz respeito a água, florestas e qualidade do ar.
Esse aparato normativo se aplica em todo o território nacional, sem considerar diferenças locais.
A uniformização e a padronização pautaram a aprovação do que pode ser considerado o mais importante instrumento jurídico para a conservação ambiental –o Sistema Nacional de Meio Ambiente, Sisnama, instituído por meio da Lei 6.938/1981.
Posteriormente, as normas que surgiram para regulamentar o uso dos recursos hídricos, das florestas nativas e do ar seguiram o mesmo formato de padronização nacional estabelecido pelo Sisnama.
Sem embargo, em um país de dimensões continentais, o movimento ambientalista, apoiado por um número expressivo de especialistas, defende a regionalização das normas, no intuito de promover sua adequação à realidade ecossistêmica de cada um dos 5 principais biomas distribuídos em território nacional: Pampas, Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga – e o mais prestigiado no mundo, Amazônia.
Para os defensores da regionalização, as especificidades dos biomas exigem que os preceitos relacionados à gestão ambiental sejam diferenciados. Significa dizer que os requisitos impostos para o licenciamento ambiental na Amazônia não podem ser os mesmos para Mata Atlântica, Cerrado etc.
Esse argumento ganha ainda mais força quando a desigualdade social e econômica entra na equação. Estudiosos do modelo de desenvolvimento brasileiro não cansam de apontar os prejuízos que a disparidade de IDHs entre a Amazônia e a Mata Atlântica causa ao país.
Segundo o raciocínio da regionalização, as regras de gestão ambiental poderiam impulsionar regiões menos desenvolvidas, ao facilitar a instalação de indústrias e outros empreendimentos que se ajustassem às características ecológicas do bioma, ao mesmo tempo que minimizariam o impacto ambiental, já elevado, em outras regiões mais industrializadas.
O licenciamento de uma indústria de papel e celulose deveria ocorrer sob um maior grau de exigências no Sudeste – região em que predomina o bioma Mata Atlântica e que foi submetida a um processo intenso de industrialização –, do que, por exemplo, no Centro-Oeste, região menos industrializada, sujeita, por conseguinte, a menores índices de poluição industrial, e cujo bioma dominante, Cerrado, pode se mostrar mais resiliente a esse tipo de impacto ambiental.
Dessa forma, devem ser considerados não apenas o grau de degradação do respectivo bioma e sua resistência e resiliência frente aos diferentes tipos de impactos ambientais, mas também o estágio da ocupação social e econômica daquela região, bem como o histórico dos processos produtivos desencadeados em âmbito local.
Afinal, voltando a falar de Amazônia e Mata Atlântica, é evidente que esses biomas apresentam realidades nitidamente distintas, a despeito do intenso impacto causado em ambos pelo cultivo de commodities agrícolas.
Não há dúvida que a regionalização é tema complexo, que transita entre conteúdos científicos e políticos que poucos dominam. Essa complexidade, diga-se, restou patente nas discussões em torno do Código Florestal promulgado em 2012 – que, aliás, fixou, em cada bioma, tamanho diferenciado para a reserva legal (fração de floresta que obrigatoriamente deve ser mantida nas propriedades rurais).
Mas o fato é que a ausência de correlação entre as regras de gestão ambiental e os níveis de industrialização e de degradação observados nos biomas configura uma significativa lacuna no ordenamento jurídico ambiental do país.
 O desafio de suprir essa lacuna, porém, é praticamente insuperável no médio prazo.

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 8 de junho de 2020



Sobre o espinhoso tema do licenciamento ambiental
* Ecio Rodrigues
Quando a economia está aquecida e os investimentos acontecem, a discussão em torno das exigências impostas para o licenciamento ambiental de grandes empreendimentos, em especial na Amazônia, costuma ressurgir pelo viés equivocado do “entrave ao desenvolvimento”.
Acontece que obras que demandam elevado aporte de recursos financeiros – que no caso da Amazônia se restringem, basicamente, à pavimentação de rodovias e construção de hidrelétricas –, ao mesmo tempo que melhoram a dinâmica econômica também ampliam a pressão por desmatamentos e queimadas.
Contudo, dado que o desempenho da economia em 2019 foi pior que nos dois anos anteriores (Governo Temer), sendo que no corrente 2020 o quadro se agravou ainda mais, em parte devido à pandemia, mas principalmente por conta da inépcia do governo federal, não há razão para crer em entrave motivado pelo licenciamento ambiental.
Longe de obstruir o progresso ou causar qualquer coisa do tipo, o processo de licenciamento ambiental é um dos instrumentos mais importantes para a gestão ambiental, e tem o propósito de melhorar a performance da obra e assim reduzir os custos relacionados à necessária recuperação dos impactos por ela originados.
Por essa razão, o licenciamento requer a realização de estudos de impacto ambiental, que, por sua vez, vão possibilitar a compreensão da realidade ecossistêmica – da que existia antes e da que passará a existir depois da obra.
Se é equivocado considerar o licenciamento um entrave à economia, também não é inteligente reivindicar estudos em quantidade e prazos que acabam por inviabilizar o investimento. 
Sem embargo, desde a promulgação da Lei 6.938/1981, que instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente, o país iniciou um processo contínuo de avaliação de impactos ambientais, por meio da execução de estudos cujas metodologias foram aprimoradas nos últimos 30 anos, chegando, atualmente, a níveis significativos de precisão.
Há relativo consenso técnico quanto ao fato de que esses estudos devem diagnosticar os meios físico, biológico e socioeconômico afetados – de forma que, num segundo momento, seja possível aferir as transformações ocasionadas na área de influência direta do empreendimento.
Para chegar a esse diagnóstico, o empreendedor tem que promover a coleta de dados primários em campo, que posteriormente são reforçados com dados secundários, geralmente oriundos de projetos e zoneamentos já levados a efeito naquele local.
A experiência brasileira, em especial a acumulada na Amazônia, demonstra que os estudos ambientais e o consequente licenciamento ambiental permitem adequar as demandas de desenvolvimento econômico e social à realidade ecológica e florestal da região.
Nesse contexto, o debate travado no Conama e no Congresso a respeito do estabelecimento de prazos para o licenciamento de empreendimentos de grande porte, como rodovias e hidrelétricas, deve ser conduzido com profundidade técnica, a fim de que não se perca a experiência acumulada.    
Existem, atualmente, diversas propostas de alteração das regras de licenciamento ambiental. Em três delas – uma em trâmite no Conama; outra, na Câmara, por meio do PL 3.729/2004; e a terceira, no Senado, pelo PL 654/2015 – são fixados prazos reduzidos para cada etapa do processo.
Isso exigirá dos órgãos ambientais estrutura e equipe técnica para realizar, dentro do prazo, todo o procedimento necessário à emissão das 3 licenças previstas na legislação: licença prévia, licença de instalação e licença de operação.
É compreensível a preocupação com os prazos, uma vez que, como a legislação atual não fixa prazo, os órgãos de licenciamento agem como se tivessem todo o tempo do mundo – para desespero dos empreendedores, que sabem muito bem que tempo é dinheiro. Todavia, essa discussão não pode se dar em detrimento do rigor técnico da análise.
Enfim, o mais importante é que as propostas de alteração sejam debatidas com a sociedade. E isso não está acontecendo.

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.


segunda-feira, 1 de junho de 2020



Na área ambiental, gestores públicos não executam o planejado
* Ecio Rodrigues
No Brasil, a discrepância entre o planejamento e a execução das decisões políticas é gigantesca – em especial quando, no primeiro caso, as evidências científicas (estatísticas e série histórica de dados primários) são a base da planificação e, no segundo, o populismo eleitoral dá o tom à execução.
Exemplos não faltam. Pode-se citar o setor do saneamento, onde houve, nos últimos 20 anos, não apenas um grande esforço de planejamento, mas também de institucionalização desse planejamento, mediante a aprovação de legislação nas 3 esferas de governo (federal, estadual e municipal).
A despeito desse esforço, todavia, os estudos demonstram que os serviços de fornecimento de água e coleta e tratamento de esgoto avançam muito lentamente, e o país ainda está muito longe de alcançar a necessária universalização.
O mais incrível é constatar que as leis simplesmente não são cumpridas – não “pegam”, como se diz. Ao que parece, os gestores públicos, nomeados mais por conveniência política e menos por mérito, não se dão conta de que a obediência à legislação é um imperativo da democracia.
Por outro lado, hoje está claro que a solução para a discrepância entre planejar e executar, entre as deliberações técnicas e políticas, não está no incentivo à participação popular – o que os acadêmicos denominam “planejamento participativo”.
O raciocínio por trás dessa metodologia, que chegou a ser bastante empregada nas décadas de 1990 e 2000, é o de que o envolvimento da sociedade – isto é, dos indivíduos diretamente afetados pela política pública planejada – adjudicaria legitimidade ao processo e, desse modo, levaria à efetivação das ações programadas. Mas a realidade mostrou que não é bem assim. 
A experiência comprova que o papel decisivo conferido à participação da população, em qualquer tipo de planejamento, estava superestimado.
Quem acompanhou o movimento pró-zoneamento na Amazônia sabe bem disso. Na década de 1990, os estados amazônicos, quase todos, gastaram muito dinheiro público (doado pela cooperação internacional) para organizar a ocupação produtiva em seus territórios, segundo o modelo de planejamento proposto pelo zoneamento ecológico-econômico (ZEE).
A área rural era dividida em “zonas”, e por meio da realização de estudos técnicos chegava-se à vocação produtiva de cada uma delas. Num segundo momento, essa vocação técnica era confrontada com a demanda da sociedade, mediante a realização de audiências públicas com ampla participação popular. Sem embargo, o ZEE – vale dizer, o planejamento resultante do ZEE – fracassou categoricamente em todos os estados onde foi instituído. E entre as causas desse malogro, pelo menos duas são manifestas.
Em primeiro lugar, a população não estava, à época – como não está hoje e provavelmente não estará no futuro –, preparada para deliberar sobre um assunto essencialmente técnico como a vocação de uso do solo.
No caso da Amazônia, parece evidente que o senso comum irá desconsiderar (como de fato desconsiderou) as atividades baseadas na exploração da biodiversidade, restringindo o horizonte de escolha às duas alternativas produtivas que prevalecem na região: criação extensiva de gado e agricultura de queimada para produção de arroz, feijão milho e macaxeira.
Desnecessário mencionar que ambas são altamente indesejáveis sob o prisma da sustentabilidade, já que dependem do desmatamento – e justamente por essa razão não têm futuro. Não é de estranhar que, no final das contas, o resultado produzido pelo ZEE na Amazônia tenha sido a ampliação da área destinada à criação de boi.
Em segundo lugar, os gestores púbicos e o Estado brasileiro de forma geral não conseguem seguir um planejamento voltado para o ano seguinte – quanto mais para um período de 20 anos, como se propunha no ZEE.
Enfim, depositar as expectativas na participação popular não parece ser o melhor caminho para tirar um planejamento do papel. No momento da execução, o cumprimento das ações depende de uma série de decisões que são prerrogativa do gestor público e, nesse ponto, ainda há muito que avançar para que o planejado se transforme em realidade.
A capacidade técnica dos gestores públicos está na raiz do problema – que não será superado enquanto cabos eleitorais forem nomeados no lugar de peritos.

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

Livro Ciliar Só Rio Acre

Livro Ciliar Só Rio Acre