domingo, 22 de novembro de 2020

SUS ambiental depende de vontade política que não existe na Amazônia

 

* Ecio Rodrigues

Embora conte com o apoio de parcela expressiva do movimento ambientalista, o processo de municipalização da gestão ambiental não consegue avançar no país – e tampouco na Amazônia.

Não é de hoje. Desde a década de 1980 que o debate em torno do papel a ser desempenhado pelas cidades no licenciamento ambiental de atividades produtivas e de obras de infraestrutura, inclusive usinas hidrelétricas e pavimentação de rodovias, acontece sob pouco envolvimento político, apresentando resultados pífios.

Uma novidade surgiu com a aprovação da Lei Complementar 140, em 2011. O Ministério Público Federal já se posicionou no sentido de que essa norma abriu caminho para a municipalização, na medida em que atribuiu aos municípios o licenciamento das atividades e iniciativas que causem impactos ambientais em âmbito local.

Sem embargo, para assumir o licenciamento desses empreendimentos, é imprescindível que as cidades constituam equipes técnicas habilitadas na análise de termos de referências e outros estudos complexos, específicos para a área ambiental.

Trata-se sem dúvida de um gargalo difícil de ser superado – mas, em contrapartida, os municípios poderiam instituir e recolher taxas de licenciamento para o custeamento do serviço.

Resumindo, o SUS ambiental, reivindicado pelo movimento ambientalista desde a década de 1990 – ao levar para esfera municipal o licenciamento ambiental –, além de adequar os empreendimentos à realidade na qual serão instalados, também poderia ampliar a arrecadação e reforçar o orçamento municipal.

Se, por um lado, a municipalização traz mais eficácia e efetividade – pois quanto mais distante da realidade local mais genéricas são as regras, aumentando o risco de fracasso no propósito de mitigar os impactos ambientais dos empreendimentos licenciados – por outro, a pressão política tende a ser maior, uma vez que, sobretudo nas cidades interioranas, os prefeitos e os gestores por eles nomeados são mais suscetíveis à influência dos atores sociais e agentes econômicos.

Afinal, como dizem no Acre, as coisas no interior se resolvem no espaço privado da casa do interessado, e não raro o prefeito vai até lá. Esse dilema – adequação à realidade local X maior pressão política – tem se mostrado mais profundo do que se imaginava.

De qualquer forma, em relação à gestão ambiental em si, pelo menos duas constatações se sobressaem.

Em primeiro lugar, o processo de licenciamento precisa ser atualizado, posto que muitas das regras de tramitação foram instituídas ainda na década de 1980.

E mais, essa atualização deve se basear na demanda representada pelas obras de grande porte previstas pelo governo federal para execução nos próximos 10 anos – o que inclui, apenas na Amazônia, cerca de 15 hidrelétricas e mais de 4 mil km de pavimentação de rodovias.

Em segundo lugar, as exigências para liberação das licenças de instalação e de operação precisam ser padronizadas e especificadas, de modo a e tornar o procedimento mais célere, preciso e eficiente.

Nos moldes atuais, em que Ministério do Meio Ambiente contradiz Ibama e vice-versa, fica até difícil imaginar a participação dos municípios.

A despeito de se mostrar atrativo para o município e para a sociedade, o SUS ambiental depende de uma demanda política que ainda não existe na Amazônia.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

 

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Pense no rio Acre e vote por ele!

 

* Ecio Rodrigues

Todos os anos, quando chega a estação seca, entre meados de julho e setembro, a população de Rio Branco se espanta ao ver o rio Acre, sua única fonte de água, se transformar aos poucos num córrego – num canal de esgoto, praticamente.

Nesse período, todos os anos, o abastecimento de água potável fica comprometido na capital, afetando um contingente de cerca de 400.000 pessoas (de acordo com estimativas do IBGE), e correndo o risco de entrar em colapso.

Além dos costumeiros e persistentes problemas relacionados à gestão pública do sistema de tratamento e distribuição de água – que nos últimos 30 anos passou, sem sucesso, da estadualização para a municipalização e vice-versa, o rio Acre sofre impressionante queda de vazão, a ponto de muitas vezes parecer que vai apartar.

Isso nunca aconteceu – graças às forças divinas, diga-se –, mas o fenômeno do “apartamento”, que quando ocorre, segundo os produtores rurais, faz a água do rio voltar no sentido da nascente, não deixa de ser ameaçador e insufla o imaginário popular.

“Vai secar?”, “Vai apartar?” – são as perguntas, erradas, que a imprensa não cansa de repetir, tal qual ladainha, toda vez que o verão amazônico atinge seu ápice.

Mas, em outubro as chuvas começam a cair, trazendo fartura e causando inundações. Se antes o rio batia recorde de vazão máxima a cada 10 anos, nos últimos 20 anos as alagações (eventos extraordinários) se tornaram tão comuns que se confundem com as cheias (eventos anuais e ordinários).

Os dois fenômenos extremos, seca intensa e alagação, têm origem na perda do equilíbrio hidrológico – o que leva o rio a apresentar vazão máxima e mínima em intervalos cada vez menores.

Mas, e os eventos climáticos? – hão de questionar alguns, ou muitos, afinal, quando El Niño ou La Niña surpreendem, não há como garantir o equilíbrio hidrológico de nenhum rio na Amazônia.

Por óbvio, se a chuva chega mais cedo ou mais tarde, se diminui ou se aumenta, haverá efeitos diretos e de curta duração na vazão do rio. Trata-se de fato comprovado em farta pesquisa, e certamente ninguém duvida disso.

Contudo, duas constatações são importantes para analisar, com maior precisão, a relação entre os eventos climáticos extremos e o equilíbrio hidrológico do rio.

Primeiro, e mais importante, a área de floresta presente às margens do rio, a chamada mata ciliar, potencializa os efeitos dos extremos de precipitação para mais ou para menos.

Significa afirmar o seguinte: se a quantidade e a qualidade de biomassa florestal que existe na mata ciliar do rio Acre em Assis Brasil fosse a mesma para todos os municípios a jusante, de Brasileia a Porto Acre, as diferenças de vazão entre cheia e seca não seriam tão expressivas.

Considerando que em Assis Brasil a cobertura florestal na área de influência da bacia hidrográfica se encontra em excelentes condições de conservação, enquanto em Rio Branco a degradação florestal é das mais graves, desde que sob o efeito do mesmo evento climático, a resiliência do rio será diferenciada para ambas as cidades.

Já a segunda constatação diz respeito às medidas que os munícipios podem tomar para recuperar a resiliência do rio Acre.

Depois dos embates relacionados à definição de competência para imposição de regras de isolamento social durante a pandemia – resolvidos pelo STF –, não há mais dúvida (se é que antes havia) de que os municípios, como prevê a Constituição, têm autonomia para dispor sobre assuntos de interesse local.

Prefeitos e vereadores podem atuar e legislar no sentido de aumentar a quantidade de biomassa presente ao longo da mata ciliar, de modo a assegurar que as demais cidades abastecidas pelo rio Acre sigam o exemplo de Assis Brasil.

Pesquisas recentes demonstram que mais de 50% da mata ciliar desse rio tão importante foi destruída para o plantio do capim que alimenta um boi que não paga, à sociedade, pela água que bebe.

Reverter o triste diagnóstico do rio Acre deveria ser prioridade para o próximo prefeito – ou a próxima prefeita – de Rio Branco. Só o voto pode fazer isso acontecer. 

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Prometendo prioridade ao Acordo de Paris, Partido Democrata vence eleição nos EUA

 * Ecio Rodrigues

Diante da derrota da inépcia e do amadorismo político, representados na figura tosca de Donald Trump, os Estados Unidos voltam a se posicionar na condição de referência para agenda das mudanças climáticas e, por conseguinte, no apoio incondicional ao Acordo de Paris.

Joe Biden venceu uma eleição complexa, em meio a uma conjuntura de pandemia e quarentena, o que levou mais de 60 milhões de americanos a votar pelo correio.

Sem embargo, e ainda que estivesse enfrentando um adversário perigoso, que tentava um segundo mandato (sendo que por lá são raros os governantes que não conseguem) e que se elegeu presidente negando o aquecimento global, o democrata sempre fez questão de deixar claro que uma de suas prioridades seria o enfrentamento das mudanças climáticas.

Pode ser cedo ainda para afirmar, entretanto, um dos grandes vitoriosos nas eleições americanas de 2020 certamente foi o movimento ambientalista mundial, cuja principal bandeira, na atualidade, é a efetivação do Acordo de Paris.

Existe farta evidência científica quanto ao fato de que o planeta está aquecendo e que o aumento da temperatura acarreta alterações climáticas, degelo das calotas polares, elevação do nível dos oceanos e outros eventos calamitosos, como secas, alagações e tsunamis, para ficar nos mais noticiados.

Assinado em 2015, na cidade que lhe empresta o nome, o Acordo de Paris é considerado o mais amplo e representativo pacto político planetário direcionado à mitigação dos impactos do efeito estufa, causa principal do aquecimento do planeta.

Os países associados à Organização das Nações Unidas, ONU, assumiram metas de redução de carbono, a serem alcançadas até 2030. Embora não seja a única causa do efeito estufa, o carbono é considerado o inimigo número 1 por duas razões, basicamente: tempo de permanência na atmosfera e quantidade produzida pela humanidade.

Boa parte do carbono presente hoje na atmosfera foi lançado há mais de 100 anos, ou seja, ainda no início do século passado, quando a humanidade descobria o largo leque de aplicações do petróleo e começava a usar indiscriminadamente essa matéria-prima.

É aí que entra a segunda parte da equação que torna as mudanças climáticas prioridade para todos os países. Reduzir a emissão de carbono significa mudar a matriz energética, freando a expansão da indústria que usa petróleo em quase tudo e ampliando o uso de fontes de energia limpa.

Uma revolução ainda pouco percebida por estas bandas está acontecendo, com o emprego do motor elétrico no sistema mundial de transporte de pessoas e cargas. Em muitos países da Europa foram impostas restrições à queima de combustíveis fósseis em automóveis, e o motor a diesel foi praticamente banido de cidades como a própria Paris.

Motores elétricos vão demandar quantidade razoável de geração de energia elétrica – que, por sua vez, não poderá ser produzida pela queima de óleo diesel. A matriz de energia elétrica mundial se volta para as 4 fontes de energia limpa: água, sol, vento e biomassa.

Nesse contexto, o Brasil é privilegiado, já que pelo menos 70% da energia elétrica produzida aqui é energia limpa, originando-se principalmente da água dos rios. Não apenas, mas muito por isso, o país é considerado peça-chave no jogo de estratégias políticas da ONU para as mudanças climáticas.

Não à toa, o Acordo de Paris é sucedâneo da Convenção do Clima, assinada em 1992 no Rio de Janeiro. Depois vieram Rio + 10, em 2002; e Rio + 20, em 2012, sempre com a presença marcante da diplomacia brasileira e tornando o país um dos mais ativos para política mundial sobre clima.

Defenestrados os ineptos nos Estados Unidos, há muita expectativa que estadistas e profissionais da política internacional entrem em cena naquele país, a fim de ajudar a humanidade a superar esse que é o real desafio – dar início à era pós-petróleo, alavancando a economia de baixo carbono.

Lamentavelmente, por aqui, o governo anda a passos lentos, e ainda tem um pé na década de 1980, quando o problema das cidades era lixo e saneamento.

A realidade do Acordo de Paris exige profissionais da política. Não há espaço para amadores na construção de uma saída planetária para a emergência climática. 

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

 

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Criação de boi na mata ciliar dos rios do Acre: absurdo, mas realidade

 * Ecio Rodrigues

Quem já teve o privilégio de viajar de batelão pelos rios Purus, Juruá e Acre, para ficar nos tributários da margem direita do rio Amazonas, provavelmente deve ter estranhado a presença de pastos às margens dos rios.

Para um observador atento, o domínio econômico da atividade pecuária, distribuída em pequenas propriedades rurais ao longo do rio, não passa despercebido.

Embora se constate significativa lacuna de informações a respeito da pecuária bovina praticada por produtores ribeirinhos em território estadual – o que deixa sem resposta questões elementares, como tamanho do plantel e densidade de animais por hectare de pasto –, é um tanto evidente a disposição do produtor para ampliar o plantio de capim até o rio, mesmo quando faltam animais para ocupar toda a área de pasto de que dispõe.

Na condição de APP (área de preservação permanente), a mata ciliar goza de proteção legal, não podendo ser usada para nenhum tipo de atividade produtiva. Dessa forma, e como estabelece o Código Florestal, uma faixa de floresta com largura mínima de 30 metros (que pode ser maior, dependendo da largura do corpo d’água) deve ser obrigatoriamente mantida nas margens dos rios e igarapés.

Significa dizer que todos os produtores que levaram seus pastos até a beira do rio estão infringindo o Código Florestal. Caso suas propriedades estejam com a situação fundiária regularizada (o que não é muito comum), terão que se comprometer com a restauração florestal da mata ciliar.

Um quadro complexo, por óbvio, que se arrasta há pelo menos 50 anos e parece sem solução – e que vem se agravando, na medida em que os igarapés mais significativos, tributários dos rios de maior vazão, também têm sido atingidos. A mata ciliar destruída nos igarapés intensifica o assoreamento dos rios e compromete a capacidade de carga em toda a bacia hidrográfica.  

Muitos municípios do Acre, se não todos, apresentam esse mesmo cenário.

Em Xapuri, um projeto recente, executado por uma organização não governamental com recursos da Fundação Banco do Brasil, levou a efeito estudo minucioso no igarapé Santa Rosa, que atravessa o município e recebe mais de 70% do esgoto domiciliar da cidade, sem tratamento.

Como demonstra esse estudo, no trecho rural do Santa Rosa, que corresponde a 60% do traçado do igarapé (cuja foz é no rio Acre), 90% da mata ciliar nativa foi substituída por capim para criação extensiva de gado.

Isto é, na porção rural a ausência da mata ciliar impossibilita o equilíbrio hidrológico do igarapé, e na urbana, o esgoto transforma a água em uma pasta viscosa e fedida.

A boa notícia é que existem tecnologias de baixo custo voltadas para a restauração florestal da mata ciliar (nos trechos rurais de rios e igarapés) e tratamento do esgoto domiciliar (nos trechos urbanos). Tecnologias que estão disponíveis e são de domínio público.

Todavia, o emprego dessas tecnologias depende da decisão dos gestores, no sentido de destinar a essa finalidade recursos orçamentários do município, do estado ou do governo federal.

Mas, enfim, a pecuária extensiva é, de longe, o maior problema nos rios e igarapés do Acre e da Amazônia.

Houve um tempo em que muitos – inclusive ambientalistas – defendiam a pecuária extensiva praticada pelo pequeno produtor, sob o argumento de que, nesse caso, limitando-se o plantel a 50 cabeças no máximo, os danos ambientais seriam insignificantes. Essa premissa se mostrou flagrantemente falsa.

Atualmente, o desmatamento no Acre está estreitamente vinculado à pecuária extensiva, ao ribeirinho e ao agricultor familiar.

O poder público tem dificuldade para lidar com essa realidade por duas razões: os gestores não conseguem desagradar o pequeno agricultor familiar, com receio de perder votos na classe média urbana – o que é insólito, mas verdadeiro; e de maneira geral as administrações não dispõem de equipe técnica para atuar nas pequenas propriedades.

Resumindo, existem soluções, mas faltam vontade política e equipe técnica, isso sim, inexistente no Acre.

 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

 

Livro Ciliar Só Rio Acre

Livro Ciliar Só Rio Acre