segunda-feira, 25 de maio de 2020


Água, florestas e desmatamento na Amazônia

Ecio Rodrigues & Aurisa Paiva, 24/05/2020
Há uma premissa relacionada aos recursos hídricos que os gestores públicos costumam tratar com indiferença: a quantidade de água existente no planeta é invariável.
Vale dizer, a despeito da mudança de estado físico – como nos ensinou a professora lá atrás, no ensino fundamental –, o somatório de água líquida, gasosa e congelada será sempre o mesmo. Por isso, a disponibilidade desigual da água no mundo ou sua migração entre países, pelos chamados rios voadores, já é causa de disputas em alguns continentes.
Água não se forma nem se desintegra. Essa constatação deveria ser assumida como diretriz principal para subsidiar as discussões sobre o uso desse recurso, pois se assim é – e a ciência não deixa dúvida –, o propósito maior, em âmbito local, deveria ser o de manter a quantidade de água existente no sistema hidrológico.
Para tanto, as florestas são peça-chave.
O Brasil é privilegiado por contar com a Amazônia, uma das regiões com maior disponibilidade de água potável no mundo, o que reserva ao país uma posição especial na chamada geopolítica da água.
Como se diz por aí, grandes privilégios trazem grandes responsabilidades – todavia, neste quesito deixamos a desejar, e a negligência na gestão dos nossos recursos hídricos, notadamente na Amazônia, é uma lamentável realidade.
É aí que entra o flagelo do desmatamento.
Juntamente com as florestas, ano após ano uma quantidade significativa de água, difícil de calcular, é suprimida pelo desmatamento. Todos imaginam que essa água retorna na época das cheias, quando as chuvas quase diárias supostamente recompõem o sistema hidrológico de cada localidade, mas não é bem assim.
Embora as chuvas do inverno amazônico ajudem a normalizar o abastecimento urbano, não neutralizam a perda de água causada pelo desmatamento.
Ocorre que o desmatamento causa assoreamento dos rios e redução da umidade relativa nas margens: a água da chuva vem e vai mais rápido.
Manter a água, ou umidade, no sistema hidrológico é a chave para resolver o problema, e uma das principais saídas para contribuir com o equilíbrio das bacias hidrográficas é a conservação da floresta que existe nas margens dos rios e igarapés.
Isto é, as chuvas trazem alento provisório para o sistema hidrológico local, mas a solução está na restauração florestal da mata ciliar presente ao longo da bacia hidrográfica.
Mas não só isso. É preciso atentar também para a quantidade e a qualidade da mata ciliar. Para explicar melhor: quanto maior a largura da mata ciliar, maior a quantidade de biomassa presente nas margens para reter umidade; por outro lado, a restauração deve privilegiar as espécies que favoreçam, ou não prejudiquem, os cursos d’água.
Significa afirmar que os produtores devem ser incentivados, ou mesmo obrigados, a manter e manejar as florestas nas margens dos rios e igarapés que passam pelas propriedades rurais. Sem embargo, como se viu por ocasião da votação do Código Florestal aprovado em 2012, os nossos políticos não estão interessados nesse debate.
Finalmente, a despeito da introdução, nos últimos 20 anos, de um arcabouço normativo relacionado ao uso dos recursos hídricos, incluindo a criação Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, constata-se certa dificuldade, por parte do poder público, para gerir esse tipo especial de sistema, que inclui bens e interesses difusos.
Ao prever a cobrança pela outorga (a estatais ou à iniciativa privada) do direito de coletar a água no rio para distribuição, a legislação jogou sobre a Agência Nacional de Água, ANA, uma prerrogativa para a qual essa agência, na condição de órgão regulador, não estava preparada.
Desde sua criação, em 2000, a ANA não consegue avançar na implementação dos instrumentos previstos no sistema, e os poucos casos de precificação, outorga e cobrança dos direitos de uso dos recursos hídricos são isolados.
Enquanto não se cobra pela outorga dos direitos de uso da água, não há dinheiro para remunerar o produtor que maneja a floresta presente na mata ciliar, a fim de melhorar a qualidade e a quantidade de água que flui no rio ou igarapé.
Pior, uma vez que a produção de água não se torna efetivamente um serviço precificado, pelo qual é possível ser remunerado – em outras palavras, como criar boi dá mais dinheiro que produzir água –, o produtor rural desmata a mata ciliar para o uso mais abominável: possibilitar que o boi tenha acesso à água.
Em 2019, o desmatamento dizimou uma área de florestas equivalente a 9.762 km² – o que representa aumento de 29,5% em relação ao ano anterior e recorde em valores absolutos para os últimos 10 anos.
De outra banda, a proposta brasileira de zerar o desmatamento ilegal, inserida no histórico Acordo de Paris – o mais importante pacto global voltado para conter os efeitos das mudanças climáticas –, ao mesmo tempo em que sugere uma preocupação com as florestas e com a água que depende dessas florestas, também demonstra que o Brasil está longe de acabar com o desmatamento legalizado. Esse, sim, o pior dos males.
Passados 20 anos desde a criação da ANA, pode ser que a aprovação do novo marco legal do saneamento traga a segurança jurídica necessária à institucionalização do serviço de produção de água.
Quem sabe o valor da ciência finalmente prevaleça, e assim se reconheça a importância das florestas para as águas da Amazônia.

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