segunda-feira, 27 de abril de 2020



Com o novo marco legal, saneamento poderá avançar na Amazônia
* Ecio Rodrigues
Depois de mais de cinco anos de intensa discussão, tudo indica que finalmente o marco legal do saneamento básico, já aprovado na Câmara, vai a votação no Senado.
Com o objetivo de possibilitar o investimento privado no setor de saneamento, o PL 4.162/2019 prevê, entre uma série de medidas, a realização de licitação para prestação de serviços de tratamento/distribuição/coleta de água e esgoto e, a parte mais polêmica, o fim dos contratos de programa.
Durou um tempo considerável a negociação entre o Parlamento e os governadores em torno dos contratos de programa. Esse mecanismo permite aos municípios transferir a estatais, sem concorrência ou outro procedimento de licitação, a prestação dos serviços relacionados a água e esgoto, o que representa fonte de arrecadação suficiente para viabilizar essas companhias.
O marco legal que entrará na pauta do Senado manteve, por um período de transição, os contratos de programas, como queriam os governadores – porém incluiu a obrigatoriedade de realização de licitação no momento da renovação contratual.
Existe grande expectativa, corroborada pelos cálculos dos economistas do BNDES, acerca do potencial de captação de recursos para o setor de saneamento.
Sem embargo, esse setor já gerou expectativas em outras ocasiões.
Ocorre que a importância do tripé de serviços públicos representado por coleta de lixo, oferta de água potável e tratamento de esgoto foi objeto de estudos variados e em quantidade suficiente a permitir que se conclua, sem medo de errar, que esses serviços, quando ausentes ou prestados de maneira precária, causam danos severos à saúde e ao bem-estar da população.
Por outro lado, também não há dúvida científica de que os custos relativos à implantação desses serviços são deveras inferiores aos gastos públicos decorrentes de sua falta.
Todos concordam que o esgoto que corre a céu aberto causa doenças que afligem as comunidades mais carentes – o que, por sua vez, onera sobremaneira os serviços de saúde, apenas para ficar no exemplo mais óbvio.
A ampliação do conceito de saneamento para além do chamado “saneamento básico” decorreu de uma demanda da sociedade brasileira ainda na década de 2000, e incluiu aspectos concernentes, entre outros, à urbanização e qualidade de vida.
Basta uma leitura breve do Atlas do Saneamento de 2018 para constatar uma preocupante desigualdade regional na prestação desses serviços (lixo, água e esgoto).
Do Sul para a Amazônia, a ausência de saneamento vai se ampliando e, sobretudo no que respeita ao esgoto não tratado, se agrava nas cidades do interior, na proporção da distância dos municípios em relação à capital dos estados.
Com a aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, em 2010 (Lei nº 12.305/2010), a esperança era que houvesse avanço nesse tópico – ou seja, recolhimento e destinação do lixo –, de modo a se alcançar uma conjuntura mais equitativa entre as regiões.  
Lamentavelmente, todavia, a expectativa de que a aplicação dessa política resultaria no fim dos lixões na Amazônia não foi atendida. Lixo e esgoto a céu aberto ainda são uma realidade preocupante.
Se e quando aprovado, o novo marco legal do saneamento poderá, enfim, alterar essa realidade. 

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 20 de abril de 2020



Governos devem cobrar externalidade ambiental da pecuária na Amazônia
* Ecio Rodrigues
A despeito de não haver nenhuma vontade política nesse sentido, a cobrança das externalidades decorrentes do desmatamento praticado pela pecuária deveria ser prioridade para os governos estaduais.
Externalidades são implicações incidentais resultantes da instalação e funcionamento de empreendimentos, e que embora não dependam da vontade do empreendedor, trazem impactos positivos e negativos à vida de terceiros.
Externalidades negativas e permanentes, como as originadas do desmatamento realizado todos os anos para instalação e ampliação de pasto na Amazônia, provocam desequilíbrios perigosos ao sistema econômico – e por isso devem ser corrigidas no médio prazo.
Para que a economia volte ao equilíbrio, os custos advindos dos prejuízos motivados pela externalidade (ou seja, pela destruição da floresta) precisam ser internalizados na planilha de custos dos projetos de financiamento da pecuária.
Por outro lado, esses prejuízos devem ser ressarcidos à sociedade pelo criador de gado, mediante a oneração da atividade.
Diversos autores se dedicaram a encontrar mecanismos para quantificar e cobrar as externalidades dos investidores. Os estudos realizados pelo economista Arthur Cecil Pigou na obra “The Economics of Welfare”, publicada originalmente em 1920 pela editora Macmillan and Co., são considerados referência obrigatória.  
Do ponto de vista matemático, o ideal, segundo Pigou, é que o máximo de produto privado líquido se aproxime do melhor produto social líquido – numa relação econômica considerada perfeita, ou equilibrada.
A lei de patentes, que remunera as descobertas científicas, é um bom exemplo de instrumento para aproximar o produto social líquido do produto privado líquido.
Porém, na maioria das transações econômicas, a obtenção do máximo de produto líquido privado é priorizada em detrimento do retorno social, enfatiza Pigou.
Analisando um conjunto variado de estudos – que abordam, entre outras situações, os transtornos causados a antigos moradores de uma região pela construção de prédios; os problemas trazidos pela instalação de indústrias em aglomerados urbanos; a venda de intoxicantes (bebidas alcóolicas), onde o débito no produto social líquido ocorre por meio do aumento dos gastos públicos com policiamento e serviços de saúde –, Pigou enfatiza que, em geral, o produto social líquido assume os prejuízos decorrentes da não redução do produto privado líquido.
Defendendo a regulação (pelo Estado) das atividades que geram efeitos incidentais sobre terceiros, o autor considera improvável que as partes envolvidas nas relações contratuais estabelecidas por essas atividades (ou seja, empreendimentos e consumidores) se interessem por uma modificação contratual, a fim de resguardar os terceiros prejudicados.
Só o Estado pode funcionar como mediador, e assim mitigar as consequências das ações incidentais, ou externalidades.
No exemplo das bebidas alcoólicas, o produto privado líquido é muito alto, em relação ao produto social líquido. Por isso, quase todos os países taxam a fabricação/distribuição/venda de cerveja, whisky, cachaça...
Citando Alfred Marshal (que, por sinal, era seu tutor), Pigou propõe que da mesma forma como ocorre com as bebidas alcóolicas, também deve ser imputado algum ônus à construção de prédios em áreas com alta concentração de casas.
Nesse caso, o empreendedor poderia ser obrigado pelo Estado a oferecer algum tipo de compensação aos moradores antigos – como a construção de praças e áreas de lazer.
Nesse mesmo sentido, diversos autores defendem a incidência de um imposto sobre investimentos, proporcional ao impacto causado pela externalidade, o que para Pigou pode ser interessante, desde que a tributação ocorra em âmbito mundial, de modo que os países não venham a perder competitividade.
Finalmente, Pigou se concentra na discussão a respeito das externalidades que afetam áreas urbanas, reforçando a ideia em torno do papel decisivo do poder estatal para equilibrar, na economia, os efeitos deletérios da supremacia do produto privado sobre o produto social.
Para Pigou, “há necessidade de uma autoridade maior, no caso, o Estado, que possa limitar a quantidade de prédios ou sua altura para evitar superlotação das áreas”.
Na visão do autor, não é possível supor o surgimento de uma cidade como resultado da ação natural dos especuladores isolados, uma vez que nenhuma “mão invisível” poderá resolver, por si própria, o problema das externalidades.
O desmatamento é a principal externalidade determinada pelo agronegócio do gado, que acarreta graves complicações à saúde e à qualidade de vida das populações que habitam a Amazônia.
Em algum momento, o lucro privado do pecuarista terá que cobrir o custo social derivado do desmatamento. Simples assim.

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.



segunda-feira, 13 de abril de 2020



Diferenciando o preservacionismo do conservacionismo
* Ecio Rodrigues
Uma coisa é considerar a floresta amazônica um santuário intocável, que deve ser protegido da presença humana – de toda e qualquer presença humana, seja uma população indígena ou um explorador com motosserra em punho.
Como defende o preservacionismo.
Outra coisa, bem diferente, é a defesa do aproveitamento comercial da biodiversidade florestal amazônica, a fim de gerar emprego e renda, todavia, assegurando-se a manutenção da floresta e o estoque de produtos, que são explorados de maneira sustentável.
Como defende o conservacionismo.
Muitos estudiosos se esforçaram para demonstrar as vantagens e riscos das duas principais correntes do ambientalismo – alguns com extrema precisão, como é o caso do argentino Héctor Ricardo Leis (“A Modernidade Insustentável”, ed. Vozes, 1999).
Para Leis, o ambientalismo deve ser compreendido como movimento histórico – e essa qualificação é essencial, por permitir distinguir o ponto de vista ambientalista do enfoque técnico comum a grupos de interesse, bem como do comprometimento ideológico de movimentos sociais.
Sendo assim, continua o autor, na gênese do ambientalismo como movimento histórico destaca-se a fase da estética, em que se molda a relação do homem com a natureza, sendo esta considerada como objeto de domínio, e o homem, como aquele que possui alma, criado para dominar esse mundo natural sem espírito.
A estética ambientalista surge então “no século XIX, do encontro (fortuito?) da preocupação dos naturalistas por conhecer melhor os ecossistemas com a preocupação democrático-revolucionária (contextualizada historicamente pelas revoluções do século XVIII nos Estados Unidos e na França) pelos direitos do homem”.
Essa fase estética – que é fortemente influenciada pelo ambientalismo americano – tem como principal referência a segregação de áreas intocáveis, como o Parque de Yellowstone (1872), que de certa forma veio glamorizar o ideal de vida selvagem, exportado para outros países.
A publicação do livro “Man and Nature”, pelo americano George Perkins Marsh, em 1824, foi decisiva para o alerta quanto à responsabilidade do homem em relação à natureza. De espírito religioso, mas adotando critérios científicos, Marsh foi pioneiro ao constatar que “[...] o homem esqueceu faz muito tempo que a terra foi dada a ele somente em usufruto, não para consumo, e muito menos para despejar lixo”.
Ainda segundo Leis, no início do século XX a fase estética do ambientalismo foi superada, em especial nos Estados Unidos, a partir dos intensos confrontos entre o preservacionismo do naturalista John Muir e o conservacionismo do engenheiro florestal Gifford Pinchot.
Na visão do naturalista, o DNA do homem seria de destruidor – daí a necessidade de segregar ambientes naturais abertos somente à visitação e pesquisa, designados como parques nacionais.
De outra banda, o engenheiro era eloquente defensor da exploração sustentável, ou uso racional – nos primórdios do que atualmente se conhece por desenvolvimento sustentável.
O envolvimento dos cientistas, conforme explica Leis, ocorreu com mais vigor na década de 1960. Nessa fase do ambientalismo é visível a participação dos pesquisadores, sobretudo com a publicação dos estudos alarmistas que previam a ocorrência de explosão demográfica em âmbito mundial, com as consequentes limitações à satisfação das demandas das futuras gerações.
Finalizando, Leis destaca o surgimento, a partir da década de 1960, do ator social mais importante do ambientalismo: a organização não governamental, ou ONG. Nos vinte anos seguintes, as ONGs se consolidariam em todo o planeta.
Aos que não conseguem compreender a importância social das ONGs para o amadurecimento da democracia, vale prestar atenção às palavras de Leis:
“[...] a intervenção da sociedade civil mundial (por meio das ONGs) nos problemas ambientais representa muito mais que uma simples ação dirigida a corrigir efeitos deletérios do mercado e dos Estados (e Governos). Ela deve ser vista em dois planos: como a condução de vínculos globais entre realidades locais (aspecto transnacional) mas também como a construção (ou reconstrução) estratégica de vínculos entre as dimensões biofísica, cultural e política da humanidade”.

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.


segunda-feira, 6 de abril de 2020



Ecologistas, economistas e a Amazônia
* Ecio Rodrigues
 A partir do seu surgimento, a ecologia começou a pôr em xeque alguns pressupostos que embasam as análises econômicas e sociológicas em torno da realidade rural amazônica.
Pelo lado da ciência econômica, os ecólogos contestam os prognósticos acerca da relação homem x natureza, que, sempre escudados no conceito “ceteris paribus”, não levam em conta os contextos históricos, sociais e culturais nos quais estão inseridas as populações tradicionais que habitam os ecossistemas da Amazônia.
Pelo lado da sociologia, questiona-se a prioridade conferida, nas análises, à relação pequeno produtor x grande produtor, uma vez que os sociólogos não atentam para a diferença ecológica fundamental entre o modo de produção extrativista, que aufere renda mediante a coleta de castanha e outros produtos florestais, e o modo de produção pecuarista, cujos ganhos são obtidos por meio da criação de gado.
Ou seja, na visão da ecologia, o problema reside no que se produz – e não no tamanho da propriedade.
Dessa forma, ao adotar a criação de gado como opção primordial de investimento (o que passou a ocorrer sobretudo a partir da última década do século passado), o pequeno produtor se igualou ao grande, tornando-se ele também um empecilho (e ainda mais complexo) para a sustentabilidade da Amazônia.
Resumindo, para os ecologistas, zerar o desmatamento efetuado para o cultivo do capim que vai alimentar o boi – seja na pequena, média ou na grande propriedade rural – é a saída para a sustentabilidade da Amazônia e, por conseguinte, para o futuro da região.
Voltando aos economistas. Em vista da insuperável inelasticidade de oferta que caracteriza a produção de borracha, castanha e demais produtos oriundos da biodiversidade florestal (com exceção da madeira, obviamente), as análises econômicas apontam a falência do modelo de ocupação produtiva baseado na exploração dessa biodiversidade – e defendem que a saída para a Amazônia é a domesticação pela agricultura e a substituição dos produtos florestais por sintéticos.
Contudo, diante da complexa realidade amazônica, não é possível, como acertam os ecologistas, concluir pela inviabilidade da exploração da biodiversidade florestal mediante mera análise da produtividade – o que justificaria o desmatamento para criar boi, desde que dezenas de outras variáveis não fossem equacionadas, ou fossem mantidas constantes, como prevê a condição “ceteris paribus” da ciência econômica.
Para reforçar o argumento em defesa da exploração sustentável da biodiversidade florestal, em detrimento do desmatamento para criação de boi, os ecologistas lançam mão do robusto arsenal científico que se ocupa das externalidades econômicas decorrentes do processo produtivo.
Acontece que, ao considerar a produtividade por hectare a principal variável para o investidor decidir o que fazer nas terras com florestas na Amazônia, os economistas simplificam a análise e deixam de lado as externalidades decorrentes tanto do desmatamento quanto da perda dos serviços prestados pelas florestas.
Afinal, existe um rol de variáveis que devem pesar na decisão de investimento dos governos e da iniciativa privada na Amazônia, e que são desconsideradas pelos economistas.
A avaliação de investimentos realizada pelos economistas deixa de prever, por exemplo, a decisiva interferência da cooperação internacional, que limita os investimentos destinados à ampliação do desmatamento ou que venham a comprometer os destinos da maior floresta tropical do mundo.
De outra banda, veja-se o caso dos recursos hídricos, que até bem pouco tempo eram tidos como externalidades ambientais, e agora passaram a compor as planilhas de custos dos empreendimentos a serem instalados na Amazônia.
Se antes as florestas eram motivo de preocupação, adicione-se, após o Acordo de Paris, a água e o ar, cuja escassez poderá pôr em risco a humanidade.
Floresta, água e ar estão conectados, não dependem da inelasticidade da borracha ou do tamanho da propriedade. Os ecologistas venceram.

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

Livro Ciliar Só Rio Acre

Livro Ciliar Só Rio Acre