terça-feira, 3 de setembro de 2019



As queimadas e os estúpidos
* Ecio Rodrigues
Embora tenha herdado um país em franca recuperação, depois de atravessar uma gravíssima crise econômica (a maior em 100 anos), o governo que assumiu em janeiro trabalha pouco e se atrapalha na incompetência – a tal ponto que qualquer assunto pode ser causa de tensão e instabilidade.
O da vez são as queimadas. Por sinal, parece estar na esfera ambiental a parte mais visível do sofrível e temerário desempenho da equipe governamental.
O advento da estação seca na Amazônia, marcada pelo corriqueiro binômio desmatamento/queimadas, desencadeou uma crise sem precedentes – que vai exigir um tempo considerável para ser superada.
A crise decorre, em primeira instância, de uma intrínseca dificuldade, por parte dos gestores, para compreender a dinâmica social, econômica e ecológica que cerca a prática da queimada na realidade amazônica.
Os produtores que empregam o nocivo método o fazem a título de investimento, depois que tomam a complexa decisão de ampliar sua produção. Em mais de 80% dos casos, essa produção se refere à atividade pecuária.
Duas constatações de suma importância resultam daí. Primeiro, que queimar é uma decisão privada de investimento. O produtor não queima por maldade, ou porque odeia os ambientalistas, muito menos sob a absurda intenção de sabotar um governo.
Segundo, que se queima para criar boi – e não para fins de subsistência, para aplacar a fome, tampouco por conta de uma suposta “tradição produtiva” herdada dos índios, como muitos querem fazer crer. Nada disso.
Há certa controvérsia jurídica em relação ao direito do produtor ao “uso do fogo” e à extensão desse direito para alcançar a prática da queimada.
De acordo com o que prevê o Código Florestal, o
produtor pode fazer uso do fogo para finalizar a limpeza do roçado no ano em que é assentado no imóvel rural, de modo a garantir o início de sua produção. Nada a ver com a queimada anual, realizada para limpeza do pasto.
Durante o chamado verão amazônico – que acontece no intervalo de junho a novembro –, a redução das chuvas favorece o investimento em queimadas.
Nesse período, a vida na região se torna um verdadeiro suplício: a fumaça cobre o céu e abafa o clima, potencializando o calor. Do fechamento de aeroportos à internação de pessoas (principalmente idosos e crianças), os transtornos vão se somando – e obviamente os custos econômicos, ambientais e sociais deles advindos são muitos superiores aos eventuais ganhos trazidos pelo aumento do plantel de gado.
Floresta em pé na Amazônia não pega fogo, todo produtor sabe disso. Exceções para os incêndios de 1999 (Roraima) e 2005 (Acre), quando eventos climáticos extremos contribuíram para levar o fogo das queimadas até as florestas.
Não há dúvida científica quanto ao fato de que o aumento do desmatamento retira umidade da área de floresta remanescente, promove a savanização e amplia o risco de incêndios florestais – enfim, cria o ambiente propício à ocorrência de uma tragédia de proporções inimagináveis.
Ações para zerar ou reduzir as queimadas, por incrível que pareça, não fazem parte das prioridades encampadas pelos governos estaduais e municipais na Amazônia. Pelo visto, não fosse a pressão internacional, também não seria prioridade para o governo federal. Ao contrário, a crença (que não guarda nenhum respaldo estatístico) é a de que incentivar o produtor a investir na queimada traz popularidade e voto aos políticos.
Por outro lado, numa reação reconhecida mundo afora, a sociedade amazônica, por meio de suas organizações não governamentais, ou ONGs, não mede esforços para convencer o produtor a abandonar a primitiva prática, fornecendo capacitação no emprego de técnicas agrícolas mais modernas.
Os recursos financeiros para esse importante e solitário trabalho têm origem, quase que exclusivamente, na cooperação internacional. Da mesma forma que vem dos países preocupados com a destruição da floresta amazônica boa parte do dinheiro para controlar o desmatamento e as queimadas.
É aí que entra a estupidez: no momento em que o governo, que evidencia baixo nível técnico e falta de rumo, fica inseguro diante da atuação das ONGs e da ajuda internacional.
Ao invés de oportunidade, os estúpidos enxergam ameaça.

*Professor Associado da Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.


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